Os dois textos que se seguem não são textos sobre o voluntariado, mas ajudam-nos a pensar em como ele é importante, se não mesmo essencial
na nossa Sociedade, pelo combate à indiferença instalada e pela atenção que
dedica ao Outro.
OS PERIGOS DA
INDIFERENÇA
Há precisamente cinquenta e quatro anos, um
jovem judeu proveniente de uma pequena cidade dos Cárpatos acordava num local
de eterna infâmia chamado Buchenwald, localizado perto da amada Weimar de
Goethe. Estava finalmente livre, mas não se sentia contente. Pareceu-lhe que
nunca mais voltaria a sentir-se contente. Libertado na véspera por soldados
americanos, recordava a raiva que eles haviam sentido perante o que tinham
visto. E, por muitos anos que viva, sempre se sentirá grato a esses homens por
essa raiva, e também pela compaixão de que eram mostras. Embora não
compreendesse a língua que eles falavam, os olhos desses homens haviam-lhe dito
o que ele precisava de saber – que também eles haviam de recordar, e de dar
testemunho. […]
Encontramo-nos no limiar de um novo século,
de um novo milénio. Qual será o legado deste século que agora desaparece? Como
será ele recordado no novo milénio? Será certamente julgado, e julgado de forma
severa, tanto em termos morais como em termos metafísicos. Estes fracassos
lançaram uma sombra negra sobre a humanidade: duas guerras mundiais, inúmeras
guerras civis, uma cadeia de assassínios absurdos (Ghandi, os Kennedy, Martin
Luther King, Sadat, Rabin), banhos de sangue no Camboja e na Nigéria, na Índia
e no Paquistão, na Irlanda e no Ruanda, na Eritreia e na Etiópia, em Sarajevo e
no Kosovo; a desumanidade do gulag e
a Tragédia de Hiroxima. E, a outro nível, evidentemente, Auschwitz e Treblinka.
Tanta violência; tanta indiferença. O que é a indiferença? Etimologicamente, a
palavra significa «ausência de diferença». Trata-se de um estado peculiar e
bizarro em que a fronteira que separa a luz da escuridão, o lusco-fusco da
aurora, o crime do castigo, a crueldade da compaixão, o bem do mal – em que
essa fronteira se dilui. E que consequências resultam inevitavelmente desse
facto? Uma filosofia? Será concebível uma filosofia da indiferença? Poderemos
alguma vez considerar a indiferença uma virtude? Será ocasionalmente necessário
praticá-la, nem que seja para mantermos a sanidade mental, para podermos viver com
normalidade, para apreciarmos uma boa refeição e um copo de vinho, enquanto à
nossa volta o mundo sofre perturbações devastadoras?
Certamente que a indiferença é uma tentação;
mais do que isso, a indiferença é sedutora. É muito mais fácil desviar os olhos
das vítimas. É muito mais fácil evitar essas interrupções desagradáveis no
trabalho, nos sonhos, nas esperanças. Pensando bem, é estranho e perturbador
sermos agarrados pela dor e pelo desespero de outra pessoa. E contudo, o
indiferente está rodeado de pessoas que não têm qualquer significado para ele,
cujas vidas são desprovidas de sentido, cuja angústia, oculta ou visível, é
desprovida de interesse. A indiferença reduz o outro a uma abstração.
Por detrás dos portões de Auschwitz, os prisioneiros
mais trágicos eram os Muselmänner,
como lhes chamavam. Enrolados em farrapos de mantas, sentados ou deitados no
chão, olhavam fixamente o vazio, sem saber quem eram ou onde estavam –
estranhos a tudo quando os rodeava. Tinham deixado de sentir dor, de ter fome e
sede. Nada receavam. Não sentiam coisa nenhuma. Estavam mortos e não sabiam.
Enraizados na nossa tradição, alguns de nós
achávamos que o pior não era sermos abandonados pela humanidade. Parecia-nos
que sermos abandonados por Deus era pior do que sermos castigados poe Ele. Um
Deus injusto teria sido preferível a um Deus indiferente. Para nós, sermos
ignorados por Deus era uma pena maior do que sermos vítimas da Sua ira. O homem
pode viver longe de Deus, mas não pode viver fora de Deus. Deus encontra-Se
onde quer que nós estejamos. Mesmo na dor? Mesmo na dor.
De certa maneira, ser indiferente àquele
sofrimento torna o ser humano desumano. A indiferença é mais perigosa do que a
ira e o ódio. A ira pode ser criativa – pode permitir escrever um grande poema,
uma sinfonia grandiosa. A pessoa faz coisas especiais pela humanidade porque se
sente irada com as injustiças que testemunha. Mas a indiferença nunca é
criativa. Até o ódio pode por vezes suscitar uma reação. A pessoa combate o ódio,
censura o ódio, desarma o ódio.
Mas a indiferença não suscita reação alguma.
A indiferença não é uma resposta. A indiferença não é um começo; é um fim. Por
isso, a indiferença é sempre aliada do inimigo, é sempre benéfica ao agressor,
nunca à sua vítima, cuja dor é amplificada quando se sente esquecida. O
prisioneiro político fechado na cela, a criança faminta, o refugiado sem casa –
não reagir a este sofrimento, não aliviar a solidão destas pessoas
proporcionando-lhes uma centelha de esperança, é exilá-las da memória dos
homens. E, ao negar-lhes a humanidade delas, estamos a atraiçoar a nossa
humanidade.
Por isso, a indiferença não é só um pecado, é
um castigo.
E esta é uma das lições mais importantes a
retirar da ampla gama de experiências de bem e de mal que este século viveu.
A sociedade que conheci era constituída por
três categorias, e três categorias apenas: os assassinos, as vítimas e os que
assistiam. Durante os períodos mais negros, dentro dos guetos e dos campos de
morte – e a ainda bem que a Senhora Clinton referiu que estamos a comemorar
esse acontecimento, esse período, que estamos a viver os Dias da Memória –,
sentíamo-nos abandonados, esquecidos. Todos nós.
E a nossa única consolação, miserável
consolação essa, era estarmos convencidos de que Auschwitz e Treblinka eram
segredos bem guardados; de que os dirigentes do mundo livre não sabiam o que se
passava por trás daqueles muros e daquele arame farpado; de que não tinham
conhecimento da guerra que os exércitos de Hitler e seus cúmplices travavam
contra os judeus, e que era uma componente da guerra que travavam contra os
Aliados. Achávamos que, se soubessem, esses dirigentes teriam movido céus e
terra para acabar com aquilo. Que teriam falado com mais coragem e mais
convicção. Que teriam bombardeado as linhas de caminho-de-ferro que iam dar a
Birkenau, só aquelas linhas de caminho-de-ferro, uma vez que fosse.
Sabemos agora, ficámos a saber, descobrimos
que o Pentágono sabia, que o Departamento de Estado sabia. […]
A triste história do St. Louis é reveladora. Há sessenta anos, a carga humana que esse
navio transportava – mil judeus – foi devolvida à Alemanha nazi. E isso
passou-se a seguir a Kristallnacht, a seguir ao primeiro progrom patrocinado pelo Estado, em que centenas de lojas de judeus
foram destruídas, dezenas de sinagogas foram incendiadas, milhares de pessoas
foram enviadas para campos de concentração. E esse navio, que já se encontrava
à vista dos Estados Unidos, foi mandado para trás. Não compreendo. Roosevelt
era um homem bom, um homem com coração. Compreendia as pessoas que precisavam
de ajuda. Porque foi que ele impediu esses refugiados de desembarcar? Um milhar
de pessoas à vista da América, esse grandioso país, a mais sólida das
democracias, a mais generosa das novas nações da história moderna. O que foi
que aconteceu? Não compreendo. A que ficou a dever-se a indiferença, ao mais
alto nível, pelo sofrimento das vítimas?
Mas também houve seres humanos que se
mostraram sensíveis à nossa tragédia. Aqueles que não judeus, aqueles cristãos
a quem chamamos «Gentios Retos», cujos heroicos atos de altruísmo salvaram a
honra da sua fé. Por que motivo foram tão poucos? Por que motivo se fez mais
esforço para salvar os assassinos das SS depois da guerra do que para salvar as
vítimas desses homens durante a guerra? Porque foi que algumas das maiores
empresas americanas continuaram a ter relações comerciais com a Alemanha de
Hitler até 1942? Tem sido aventado, até com documentos, que a Wehrmacht não teria conseguido invadir a
França sem o petróleo que obteve em fontes americanas. Como se explica esta
indiferença?
E contudo, meus amigos, também aconteceram
coisas boas neste século traumático: a derrota do nazismo, o colapso do
comunismo, o renascimento de Israel no solo ancestral, o abandono da segregação
racial, o tratado de paz de Israel com o Egito, o acordo de paz na Irlanda. E
recordemos o dramático e emocional encontro entre Rabin e Arafat que o Sr.
Presidente promoveu neste local. Eu assisti a ele e nunca me esquecerei.
E ainda, é claro, a decisão conjunta dos
Estados Unidos e da NATO de intervirem no Kosovo para salvar aquelas vítimas,
aqueles refugiados que haviam sido enraizados por um homem que, em minha
opinião, e devido aos crimes que cometeu, devia ser acusado de crimes contra a
humanidade.
Mas desta vez o mundo não se calou. Desta
vez, reagimos. Desta vez, interviemos. Significa isso que aprendemos com o
passado? Significa isso que a sociedade mudou? Que o ser humano está menos
indiferente e mais humano teremos realmente aprendido com a nossa experiência
estaremos menos insensíveis ao sofrimento das vítimas de limpezas étnicas e de
outras formas de injustiça? Perpetrados longe ou perto? Será a presente
intervenção no Kosovo – uma intervenção justificada dirigida por si, Sr.
Presidente – uma advertência duradoura, uma indicação de que nunca mais
permitiremos, seja onde for, que se façam deportações, que se aterrorizem
crianças e pais? Terá esta intervenção o efeito de desencorajar outros
ditadores de fazerem o mesmo?
E as crianças? Vemo-las na televisão, lemos o
que delas se diz nos jornais, e quebra-se-nos o coração. O destino das crianças
é sempre, inevitavelmente, o mais trágico. Quando os adultos se guerreiam, quem
morre são as crianças. Vemos-lhes as caras, os olhos. Ouviremos os seus
pedidos? Sentiremos a dor, a agonia que elas sentem? A cada minuto que passa
morre uma criança, vítima de doença, da violência ou de fome. Algumas delas –
muitas delas – podiam ser salvas.
E assim, volto a recordar aquele rapazinho
judeu dos Cárpatos, que sempre acompanhou o velhote em que eu me tornei com o
passar dos anos de busca e de lutas. Juntos, avançamos para o novo milénio,
levados por um medo profundo e por uma esperança extraordinária.
Elie Wiesel
VII Noite do Milénio na Casa Branca, Washington
12 de abril de 1999
In MONTEFIORE, Simon Sebag (2009), Discursos que mudaram o mundo, Lisboa, Difel.
DAR SEM ESPERAR NADA EM TROCA
"(...) Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo."
(Mt. 25, 35-46)
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