30/05/07

"Era das inocências acabou"

FERNANDO NOBRE

Nasceu em Luanda, em 1951 Viveu em Bruxelas, onde estudou, antes de vir para Portugal, país das suas origens paternas

Especialista em Cirurgia Geral e Urologia

Esteve nos Médicos Sem Fronteiras (Bélgica) antes de fundar, em 1984, a Associação Médica Internacional (AMI), à qual preside

Tem quatro filhos


Há quase 30 anos que presta auxílio humanitário. O que tem mudado?
Uma série de outros intervenientes foram entrando no campo da acção humanitária, nomeadamente os militares, principalmente ao longo dos últimos 15 anos. Isso pode levar a algumas confusões, sobretudo quando soldados na reserva, como aconteceu no Iraque ou no Afeganistão, sob pretexto de distribuição alimentar ou outro tipo de ajuda, estão a tentar obter informações militares e políticas que depois são transmitidas aos seus comandos. Daí que, os humanitários civis, os genuínos, tenham sido apanhados numa amálgama e, hoje, a grande questão é a própria segurança e sobrevivência. Porque a era das inocências acabou, hoje somos vistos como possíveis espiões na recolha de informações.
No livro diz que "a instrumentalização da ajuda passou a ser uma das armas das guerras em curso"...
Hoje, são invocadas razões humanitárias como motivo para algumas guerras. Nós sabemos que o humanitário é o alibi para que decisões políticas estruturantes não sejam tomadas. É mais fácil para os Estados, em geral, desembarcarem toneladas de arroz na chamada ajuda humanitária, do que se empenharem na resolução dos verdadeiros problemas. Por outro lado, há uma perversão. No início da guerra do Afeganistão, em finais de 2001, no mesmo dia, havia aviões a largar bombas e, em simultâneo, noutras zonas, havia aviões que lançavam rações de combate. Para nós, humanitários civis, é algo impensável.
Que impacto teve o 11 de Setembro?
A partir dos atentados a grande massa monetária foi transferida de projectos de desenvolvimento, de combate à sida, à pobreza, à fome, para os orçamentos militares. Tivéssemos nós investido no mundo o que já foi gasto na guerra do Iraque, só no Iraque, e o planeta já estaria noutras condições. Há um paradoxo tremendo que explica tudo: os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU têm como primeiro mandato zelar pela paz do mundo, mas são, ao mesmo tempo, os cinco maiores produtores de armas. Nenhuma guerra se faz à pedrada, faz-se com equipamento moderno. É preciso que alguém o produza e venda. A partir daí só nos resta tentar gritar.
Daí estes Gritos contra a Indiferença...
Sim, porque ou nos acomodamos e aceitamos, e a partir daí vamos tentar resolver os nossos problemas exclusivamente pessoais, ou o que nos resta fazer é tentar alertar, chamar a atenção para o bom senso. Porque se queremos um futuro para a nossa humanidade, tem de ser um futuro de pontes, de diálogo, de entendimento.
Como é que podemos pedir a um cidadão quase sem tempo para si próprio que se envolva e dê algo aos outros?

Temos de explicar, e daí alguns textos desta colectânia de conferências, editoriais, etc. sobre o voluntariado, que a participação cívica é um dos critérios essenciais de desenvolvimento em democracia. Se quisermos amanhã continuar a viver em sociedades desenvolvidas e democráticas, temos necessariamente de ter cidadãos participativos: com a sua força de trabalho, o seu voluntariado, ou com a participação financeira em acções que lhe pareçam credíveis, exequíveis e transparentes. Mas uma coisa é certa: não podemos, porque a tendência vai para aí, permitir e incentivar uma desmobilização cidadã. Sou daqueles que defendem que é essencial que os cidadãos se interessem pela causa pública.


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