Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome/Aveiro, desde o seu início, o Coronel Martinho Pereira explica como funciona esta instituição, numa altura em que se prepara a próxima campanha. Nos dias 5 e 6 de Maio, se for a uma superfície comercial, é provável que encontre alguém a sugerir que partilhe alimentos com as 30 000 pessoas da região de Aveiro que são apoiadas pelo Banco Alimentar.
Correio do Vouga - Nos dias 5 e 6 de Maio, vai haver mais uma campanha do Banco Alimentar (BA). Em quantos locais do distrito de Aveiro vai ser feita?
Coronel Martinho Pereira - A campanha cobre quase todo o distrito, com a excepção dos concelhos de Oliveira de Azeméis, Arouca e Castelo de Paiva, unicamente porque ainda não arranjámos nenhuma instituição que consiga localmente supervisionar o voluntariado. Enquanto não tivermos alguém que se responsabilize pelo voluntariado, para que tudo decorra correctamente, como é norma do BA, nós não podemos avançar. Tem que haver formação do voluntariado e um supervisor que responda às perguntas que a população possa pôr: para que é, para que serve, onde é recolhido, a quem é distribuído... Mil e uma perguntas. O coordenador local tem de saber responder, já que o voluntário nem sempre está habilitado a responder. Só quando isso acontece é que abrimos a campanha num outro concelho.
A campanha dos próximos dias vai abranger mais um concelho...
Sim, São João da Madeira. Há uma grande expectativa e esperamos que tudo corra bem. Esses coordenadores locais estão ligados a alguma instituição?
Normalmente são pessoas de IPSS, Cáritas, Vicentinos... Em alguns concelhos, como Estarreja, Ovar, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Águeda, os rotários assumem essa supervisão.
Mas não são eles que angariam os voluntários...
Não. Os voluntários oferecemse ao BA e o BA dá ao coordenador local a lista de voluntários para a sua zona de acção, o que não quer dizer que o próprio coordenador não arranje pessoas com espírito solidário.
As pessoas perguntam muito? Contestam?
Não. O BA têm uma credibilidade que permite que a campanha seja feita com um certo à vontade, porque todos os géneros alimentares recolhidos são consumidos no local onde é feita a recolha. Nunca vai nada para fora da área respectiva de cada BA, no nosso caso, o distrito. Mais: as pessoas acreditam no BA.
De onde vem essa credibilidade?
Os BA são contra os desperdícios alimentares. E não podemos, de maneira nenhuma, permitir que algo que seja entregue no banco seja motivo de desperdício. Tudo o que é entregue no BA é consumido a tempo e horas, dentro do prazo de validade. Podem perguntar: “Mas não há géneros consumidos fora do prazo de validade?” Isso só acontece quando há uma credencial passada pela autoridade sanitária que diga que o género alimentar pode ser consumido até à data tal, porque está em condições. Acontece as empresas terem géneros em fim do tempo de utilização, digamos assim. Esses géneros são analisados pela autoridade sanitária e é-lhes dado mais um prazo. Em vez irem para o lixo, são distribuídos com qualidade – de certeza absoluta, caso contrário não os distribuímos – a pessoas com fome.
Deduz-se das suas palavras que, além das recolhas à porta do supermercado, há ofertas das empresas...
As duas campanhas por ano [em Dezembro e em Maio] são as partes visíveis do BA. O voluntário dá de si, dá o seu trabalho. É a parte mais agradável, é bom ver a alegria com que as pessoas trabalham para o BA! Mas isso corresponde a uma recolha de pouco mais do que 200 toneladas. Ora, nós distribuímos cerca de 1800 toneladas por ano. O que o Banco recolhe é uma mínima parte do que distribui.
De onde vêm, então, esses géneros?
Vêm das empresas alimentares e cooperativas, que dão aos BA géneros que não conseguem pôr no mercado. Têm uma contrapartida, porque o Banco passa recibo de tudo o que recebe, que pode ser descontado no IRC. É vantajoso para as empresas entregar no BA, em vez de irem poluir e criar problemas. E, acima de tudo, alimentam aqueles que têm fome
Têm alguma acção junto das empresas? Alguma acção de charme?
Não. Quase todas sabem que existem BA. Acontece que existe uma Federação Portuguesa de BA. É à Federação que as empresas entregam os bens. A Federação, por sua vez, faz a distribuição pelos Bancos, consoante a quota de cada um. Aveiro tem a terceira ou quarta maior quota. Há empresas de transportes, que gratuitamente levam esses géneros ao BA. Há uma cadeia de solidariedade extraordinária que eu gostava de realçar. As empresas utilizam a capacidade de transporte sobrante para levar bens alimentares aos diferentes BA.
Há fome em Aveiro?
A fome é um peso muito grande que as pessoas não conseguem suportar. Por vezes, nem sequer dão a conhecer que têm fome. Essa fome envergonhada é a mais difícil de descobrir e apoiar. As próprias instituições têm dificuldades em detectar. Têm um papel extraordinário os grupos Cáritas e de Vicentinos, que vão à família escondida que passa dificuldades. Grande parte dos bens é entregue às IPSS, que têm a seu encargo imensas crianças e utentes de todas as idades. As instituições recebem “per capita” da Segurança Social. No entanto, isso não chega para pagar o custo que têm. Por vezes, as próprias famílias suprem essa diferença. Mas há famílias que não têm capacidade financeira. Por outro lado, por vezes as instituições acolhem mais pessoas do que as apoiadas pela Segurança Social. Se tem 70 crianças e a quota é de 50, 20 não são subsidiadas. Esse custo social é tido em consideração pelo Banco Alimentar, para saber se deve apoiar determinada instituição. Grupos Cáritas e Vicentinos não entram nessas contas, porque entregam directamente às famílias, tal como algumas IPSS que têm intervenção comunitária.
Um BA implica uma grande capacidade logística?
Temos um centro de distribuição, junto aos serviços de transporte de Aveiro, que permite cargas e descargas num espaço coberto. As instalações cedidas pela Câmara Municipal de Aveiro têm qualidade higiénica. São modelares a nível nacional, mas são curtas (cerca de 1500 m2 cobertos). Não chega. Servimo-nos graciosamente de instalações da Equatus e da Filcra, que nos cedem na Gafanha, principalmente quando o programa comunitário de apoio às populações carenciadas (PCAAC) nos dá cerca de 500 toneladas de alimentos. Para não haver mistura dos géneros do BA com os géneros da UE, servimonos desses armazéns. Por outro lado, quando algumas empresas nos dão carnes ou gelados, como não temos instalações de frio no BA (só temos pequenos frigoríficos e arcas que dão para muito pouco), servimonos da Filcra. Sem essas ajudas, seria muito difícil o Branco viver.
Além do Coronel Martinho Pereria, qual é a estrutura permanente do BA?
Vamos lá ver, eu sou o que trabalho menos! A espinha dorsal do Banco é o voluntariado. Sem voluntários, o BA não tinha razão de ser. Passava a ser uma instituição normal. O que nos distingue é o voluntariado. O BA tem três funcionários: um na secretaria e dois no armazém. Mais ninguém. Esses três funcionários têm por detrás deles voluntários sempre disponíveis, que semanalmente vão um, dois ou três dias ao BA. Vêm de Águeda ou de outras povoações vizinhas. São voluntários permanentes, que têm tarefas a seu encargo. Cumprem religiosamente! Eu digo a muita gente que se reforma e as pessoas riem-se, mas acabam por me dar razão: «Reformaste- te? Emprega-te! Começas a pensar: “O que é que eu ando cá a fazer? Já não faço nada. Ando de um lado para o outro, sem nenhum objectivo; e começas a ficar desanimado da vida”. Emprega-te. Vai para o BA, que dou-te lá trabalho!»
E tem lá trabalho para dar nesta altura?
Tenho. Para toda a gente. Nunca se manda nenhum voluntário embora. Todo o voluntário tem tarefas. O voluntário faz aquilo que entende que pode fazer, devidamente orientado pelas pessoas que estão à frente da instituição. A direcção é constituída por oito pessoas, das quais quatro estão desde a fase inicial. Sabemos de cor e salteado o que é preciso fazer para cada campanha, qual o número da cabazes que é distribuído por cada instituição, os dias de fazer e distribuir os cabazes, etc. Os voluntários são devidamente orientados e não têm qualquer pejo em pegar numa vassoura e varrer ou estar junto do computador a verificar se os sócios têm as quotas em dia, escrever uma carta, etc.
O BA precisa de dinheiro?
O BA não quer dinheiro para nada, a não ser para pagar atempadamente aos seus funcionários e para ter o necessário para o expediente: telefonar a instituições e contactar os voluntários. Temos uma base de dados dos voluntários e escrevemos-lhes a perguntar pela disponibilidade de dias e horas. No fim, enviamos uma carta a agradecer: “Obrigado pelo seu trabalho. Graças ao seu esforço, conseguimos x toneladas”. Merecem-na, sem dúvida alguma. Isso é dignificar o seu trabalho. É regra geral que quem vai uma vez volta a ir. As pessoas entusiasmam- se. Na sala de triagem, desde o juiz ao professor universitário, à empregada doméstica, todos estão irmanados no espírito solidário.
Qual é o género que as pessoas mais dão?
Arroz. É terrível! Por mais que digamos e imprimamos nos sacos que géneros é mais aconselhável dar, o arroz bate sempre o recorde. É o mais fácil de dar.
E qual o que o BA mais deseja?
Óleo, azeite, conservas... São géneros que nos dão maiores garantias de ter no BA e de distribuir correctamente. E as pessoas têm uma necessidade enorme destes géneros. Faz-se muita coisa com atum, óleo ou azeite. Estamos agora a conseguir isso com a “campanha vale”. Em vez de darem um género visível, as pessoas dão um vale que é trocado por géneros que são os mais aconselhados para dar ao banco: leite, conservas, azeite...
Como se processa a “campanha vale”?
Por altura da campanha normal, as grandes cadeias de supermercados disponibilizam vales nas caixas. As pessoas tiram, pagam na caixa e entregam ao BA. No fim, é feita listagem geral. Na última campanha, em Aveiro, foram angariadas deste modo 30 toneladas.
A sua experiência de comandar soldados serviu para comandar este exército de voluntários do BA?
Temos para cima de 1600 voluntários em cada campanha, que são criteriosamente utilizados. Só aqui em Aveiro, no armazém e na cidade, são precisos cerca de 600. Cada pessoa tem tarefas próprias. É uma família extraordinária, há um grande espírito de colaboração, tanto no BA de Aveiro, como na Federação nacional – sou um dos vice-presidentes – e na Federação Europeia, onde também tenho lugar.
O voluntariado é fundamental...
É a espinha dorsal do Banco. Sem voluntários, a filosofia do Banco deixava de ser posta em prática. A pessoa dá alguma coisa de si aos outros. Há pessoas que passam fome, com o seu pequeno trabalho e doação, essa pessoa pode ser alimentada melhor. É preciso ter noção de que os desperdícios alimentares
Espera então que o voluntário, colaborando contra o desperdício, também se eduque...
Sem dúvida. Aliás, nós promovemos no BA a educação para a cidadania. Inclusive falamos do tema nas escolas, a convite das escolas ou por nossa iniciativa. Temos nas nossas mãos a capacidade de evitar que muita gente passe fome. Nos países desenvolvidos, mais de 100 milhões de pessoas vive abaixo do limiar de pobreza. Um terço da população mundial sustenta-se com menos de dois dólares por dia per capita. Em Portugal, 20% da população vive abaixo do rendimento mínimo. Se tivermos a noção de que o supérfluo pode fazer tanto bem a outras pessoas, evitamos muitos danos. Podemos fazer muito. A Madre Teresa tem várias coisas escritas sobre isto. Há um texto muito giro [E cita de cor]: “Não te detenhas. Se estás velho, se não podes correr, trota. Se não podes trotar, caminha com uma bengala. Nunca te detenhas. Não tenhas saudades do que fazias quando era mais novo. Fá-lo na mesma. A maneira como o fazes é que pode ser diferente”.
Entrevista para ler aqui.
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