Procuram-se mães para os orfãos da solidariedade
As casas espalham-se pela colina. Ao todo são nove… São pequenas, mas muito confortáveis, caiadas de várias cores e todas baptizadas por um benfeitor. Relva, jardins com flores, bicicletas num ou noutro canto. O conjunto parece uma pequena aldeia só que esta tem um muro branco e alto a ladeá-la. Lá dentro habitam 41 crianças. A mais pequena tem nove anos e a mais velha, já é adulta, e tem 27. A Aldeia SOS de Gulpilhares, em Vila Nova de Gaia, é um dos três pólos da associação com o mesmo nome. O conceito nasceu na Áustria, fruto do sonho de um homem. Hermann Gmeiner, médico e órfão de mãe desde tenra idade, queria dar uma mãe, irmãos, irmãs, uma família e um lar às crianças órfãs e abandonadas da Segunda Guerra Mundial. Em 1949, em Imst, nasceu a primeira destas aldeias familiares. A ideia rapidamente se espalhou por todo o mundo sendo que, actualmente, existem 452 Aldeias de Crianças SOS, que oferecem um lar a 46.700 crianças. Um conjunto de 1.240 instituições SOS (jardins de infância, lares de jovens, centros sociais e médicos) presta auxílio a mais de 600.000 beneficiários em 132 países.
No nosso país, a Associação das Aldeias de Crianças SOS Portugal foi fundada em 1964 com o estatuto legal de Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). A primeira Aldeia de Portugal foi inaugurada em 1967 em Bicesse, Cascais. Hoje existem três: Bicesse (Cascais), Gulpilhares (V.N.Gaia) e na Guarda, acolhendo no total cerca de 160 crianças. Desde Outubro de 2006 também está em funcionamento uma residência para jovens das Aldeias, em Rio Maior e um centro social em Bicesse, que dá apoio às mães reformadas e a pessoas idosas da comunidade.
As Aldeias de Crianças SOS distinguem-se de outras instituições com o mesmo fim pelo facto de acolherem essencialmente grupos de irmãos. Deste modo, desde que foi fundada em 1980, a Aldeia de Gulpilhares junta na mesma casa rapazes e raparigas que convivem como se fossem irmãos de sangue. A acompanhá-los está uma “mãe social” que zela por eles 365 dias por ano e 24 horas por dia. “No essencial é uma família”, conclui o director da Aldeia, Rui Dantas. Cada criança dispõe do seu quarto, do seu espaço e dos seus objectos. Neste projecto foram suprimidos os refeitórios e os dormitórios para que, segundo o director, “cada criança tenha um tratamento muito personalizado”. Cabe ao Estado assegurar a grande fatia do bolo do financiamento necessário ao dia-a-dia da Aldeia. O resto do montante é disponibilizado por sócios, benfeitores e pela Kinderdorf Internacional, uma organização internacional sem fins lucrativos de ajuda à criança.
O conceito de modelo familiar de cuidados a longo prazo assenta em quatro princípios: a mãe, os irmãos, a casa e a aldeia. Fátima Fraga é mãe social há 27 anos. Da soleira da porta da sua casa, convida-nos a entrar. Lá dentro, na sala, um jovem está estirado no sofá a ver televisão. São muitas as molduras com fotografias espalhadas por toda a divisão. Fátima, não é de cerimónias e convida-nos logo a sentar. Com 57 anos de idade confessa-se “cansada” da função. “Isto é uma missão, não é um trabalho. Todos os dias tentamos fazer pequenos milagres que nem os pais verdadeiros fizeram com os filhos”. Fátima é uma das cinco mães sociais que vivem em Gulpilhares. A aldeia tem nove casas e precisava de nove mães, mas é cada vez mais difícil encontrá-las. “Temos aqui 41 crianças, mas há capacidade para 80. Isto acontece porque não há mães para abrir mais casas”, lamenta o director. “No início era mais fácil o recrutamento, pois havia mais mulheres mais disponíveis. Agora é mais difícil. A sociedade mudou muito. Para virem trabalhar aqui, as mães SOS têm de se desligar da sua família de origem para se poderem dedicar totalmente a estas crianças”, explica.
As mães são quase sempre mulheres solteiras ou divorciadas que decidiram dedicar a sua vida à instituição. Não são aceites mães solteiras com filhos porque, explica Rui Dantas, “é muito difícil gerir a diferença entre filhos legítimos e adoptivos. Há sempre ciúmes e desconfianças”.
Na aldeia existe uma equipa educativa constituída pelo director, assistente social, psicólogo, auxiliares, educadores e voluntários que apoiam as mães SOS na sua missão. As crianças e jovens levam uma vida normal, vão à escola, aos centros de formação profissional, à paróquia, praticam desporto, convivem com as crianças e jovens da sua comunidade. A interacção das crianças e jovens com a comunidade exterior é muito importante “para ajudá-las a crescer e a lidar com a sociedade”, explica Rui Dantas. A recuperação do equilíbrio psicológico das crianças e jovens quando chegam maltratados é uma conquista morosa e na qual os obstáculos e recuos são frequentes.
Fátima Fraga conhece bem esse dilema, afinal já ajudou a criar duas dezenas de “filhos”. “São quase sempre miúdos revoltados com a vida e demora algum tempo até ganharem confiança e aprenderem a respeitarem-nos”, explica a mãe social. Para além da “mãe”, cada criança é apadrinhada por alguém que financia ou apoia os seus estudos, que lhe escreve cartas e envia fotografias, que a convida para passar férias, que lhe destina uma conta poupança. A vida da criança é planeada a longo prazo e vista como “um investimento” por parte da organização, explica o director da Aldeia. Desde que entra (o que pode acontecer apenas com dias de vida) até que sai (já em idade adulta), a criança será educada e formada para que venha a ser “um indivíduo responsável, independente e autónomo na sociedade”.
Em Julho passado, a instituição foi galardoada com o prémio Gulbenkian Beneficência, no valor de 50 mil euros, pela missão e pelo trabalho desenvolvido em Portugal ao longo de 43 anos de existência em prol das crianças mais vulneráveis e desprotegidas, “um prémio que muito nos honrou e que ainda nos dá alento para fazer mais e melhor”, afirma Rui Dantas.
Fátima Fraga vem à rua despedir-se de nós. Diz que tem muito que fazer, pois são quase horas de almoço e é preciso preparar a refeição para os nove filhos adoptivos. Dá de comer aos gatos no jardim e vai para dentro de casa. Nós descemos a rua e voltamos ao portão principal. Dois miúdos, com 10 ou 11 anos, passam de mochila às costas e a conversar. Os portões estão sempre abertos e cada um faz a sua vida. Afinal, aqui, o conceito tradicional de instituição de acolhimento esbate-se por detrás das portas das várias casas e da “mãe” de cada um, que acolhe nos braços os filhos dos outros, tentando proporcionar-lhes uma vida o mais normal possível.
Notícia daqui.
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