01/12/07

Crónicas - Voluntariado


Finalmente me encontro.

Quando decidimos sair de casa para fazer voluntariado noutro país, todos levamos no bolso um sentimento nobre. Ouvimos palavras como solidariedade, ajuda e altruísmo. À chegada, o fascínio. Com absolutamente tudo.

Mas depressa outro sentimento toma posse. Dias ou semanas depois de chegarmos, todos somos assaltados por uma pergunta: "O que é que eu estou aqui a fazer?"

O orfanato funciona tão bem e existem tantas mãos a ajudar, que questionamos o nosso contributo para esta casa. Faz sentido sermos mais uma boca para alimentar e mais um colchão, cheio de ácaros, que passa a ter lençóis?

Eu? Só quatro semanas depois de chegar é que consigo dizer e realmente sentir: Finalmente me encontro.

A vontade de, no início, fazer tudo

Dois dias depois de chegar houve uma reunião geral. Foi anunciada a chegada de mais um voluntário. Mas este tinha algo de invulgar. Para alegria de todos, falava Português. Assim, para toda e qualquer tarefa na qual a nossa língua mãe fosse imperativa, ouviu-se a pergunta, simples e sem rodeios: "Miguel?"

Sim, posso fazer exercícios de fonoaudiologia, pois é necessário que se pronunciem bem as palavras. Sim, posso dar aulas de reforço escolar, porque falhas de comunicação acabam em "bagunça". Sim, posso continuar a traduzir material para português. Sim, posso levar as crianças ao médico. Sim, posso... Sim... Sim... Sim...

À porta, antes da reunião, fui avisado pelo director: "Não te chegues à frente para tudo. Se o fizeres, eles comem-te vivo." Dito em vão. O erro fora cometido. No meio de mãos calejadas pela enxada, sujas pelo giz do quadro e de olheiras por levantar cedo, descobri uma preferência.

Depois da deriva, um rumo

Semanas depois de chegar, chamei o director e olhando-o nos olhos disse: "Vamos falar dos objectivos da minha estadia?"

A reunião durou pouco tempo. Fechei o caderno, com alguns apontamentos, e recebi um sorriso do rapaz com quem falei pela primeira vez, em Janeiro, numa entrevista que durou a meia hora mais longa da minha vida. Eu sabia que determinaria a aprovação, ou não, da minha candidatura a este programa de voluntariado. Olhou-me e disse: "Parabéns pelo trabalho que tens feito até agora."

Saí da reunião a respirar fundo. Um novo passo na minha vida. Como quando saí do Expresso, depois da reunião com a equipa que arriscou em apostar no meu projecto. Nesse dia, sentei-me no chão e respirando a responsabilidade e as expectativas sobre mim, soltei o nó no estômago e disse, engolindo em seco: "Vai começar."

Dessa reunião saí como jovem cronista nas Américas. Desta saí com uma responsabilidade muito maior em cima e um título proporcionalmente pomposo: Coordenador Médico.

Entre outras funções, estarei responsável pela saúde das crianças. A primeira pergunta que vem do outro lado do Atlântico, de uma progenitora preocupada, é: "E da tua? Quem é que cuida da tua saúde?" Bem, isso logo vejo. Agora tenho mais com que me preocupar.




Testemunho daqui.

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